terça-feira, 20 de março de 2007

A pedagogia libertária presente na luta sindical.

A Greve de 1917 "Quando se fazem algumas referências a atuação de Edgard Leuenroth, quer como militante proletário e anarquista, não pode deixar-se de mencionar a greve geral que aconteceu em São Paulo no ano de 1917, quando paralizou inteiramente todo o comércio e a indústria desta Capital. Assim também, quando se faz menção daquela greve geral, o nome de Edgard Leuenroth aparece estritamente ligado àqueles acontecimentos. O motivo dêsse estrito ligamento assenta em que êle foi considerado o único responsável por aquela greve que chegou a causar pânico ao patronato e ao próprio Estado. Em resposta a uma dessas referências Edgard enviou ao jornal Estado de São Paulo a seguinte carta":

"Citado nominalmente em Notas e Informações de 2 do corrente, com referência à minha participação na greve geral de 1917, sinto-me na obrigação de vir a público, a fim de contribuir com alguns esclarecimentos, para que o episódio citado seja registrado em tôda a inteireza de verdade histórica.

Torna-se necessário, por isso, ser permitido pronunciar-me, embora sumariamente, sôbre a origem e o desenrolar dêsse acontecimento de excepcional relevo na história da vida coletiva de São Paulo. Diga-me, antes de tudo, que a greve geral de 1917 não pode, de maneira alguma, ser equiparada sob qualquer aspecto que seja examinada, com outros movimentos que posteriormente se verificaram como sendo manifestações do operariado.
Isso não, absolutamente não! A greve geral de 1917 foi um movimento espontâneo do proletariado sem a interferência, direta ou indireta, de quem quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, consequentemente de um longo periodo da vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora.

A carestia do indispensável à subsistência do povo trabalhador tinha como aliada a insuficiência dos ganhos; a possibilidade normal de legítimas reivindicações de indispensáveis melhorias de situação esbarrava com a sistemática reação policial; as organizações dos trabalhadores eram constantemente assaltadas e impedidas de funcionar; os postos policiais superlotavam-se de operários, cujas residências eram invadidas e devassadas; qualquer tentativa de reunião de trabalhadores provocava a intervenção brutal da Policia. A reação imperava nas mais odiosas modalidades. O ambiente proletário era de incertezas, de sobressaltos, de angústias. A situação tornava-se insustentável.

A notícia da morte de um operário, assassinado nas imediações de uma fábrica de tecidos do Brás, divulgou-se como um desafio à dignidade do proletariado. Caracterizou-se como um violento impacto emocional sacudindo todas as energias. O enterro dessa vitima da reação foi uma das mais impressionantes demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o feretro da Rua Castano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então Ladeira do Carmo em caminho da Cidade, sob um silencio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertencia. Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde a Policia cercava os encontros de ruas. A multidão ia rompendo todos os cordões, prosseguindo sua impetuosa marca até o cemitério. À beira da sepultura revezaram os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à reação.
No regresso do cemitério, uma parte da multidão reuniu-se em comicio na Praça da Sé; a outra parte desceu para o Brás, até à rua Caetano Pinto, onde, em frente à casa da familia do operario assassinado, foi realizado outro comicio. Sem que se possa precisar detalhes, verificou-se uma agitação entre a multidão estacionada nas imediações da avenida Rangel Pestana. Havia sido assaltada uma carrocinha de pão. Essa ocorrencia teve o efeito da chispa lançada ao rastilho de polvora. Parece ter servido ela de exemplo e estimulo para que a mesma ação fosse praticada em muitas partes da cidade. Feito que aconteceu com rapidez fulminante, como se um veiculo de comunicação de excepcional capacidade pusesse em contato todo o elemento popular paulistano. As fábricas e oficinas esvaziavam-se, enquanto as ruas se povoavam de multidões, movimentando-se agitadas em todos os sentidos. Foi quando mais se intensificou a repetição do episódio do assalto do carrinho de pão, sendo atingidos mercearias, depositos de mantimentos, armazéns, etc. Paralizava-se a vida laboriosa de São Paulo que não pode parar, para dar lugar a uma convulsão popular sem precedentes na vida paulistana.

A Policia entrou em ação. Começaram os choques com as multidões. Dos encontros resultaram vitimas de ambos os lados. Os operários não se podiam reunir para tomar resoluções. Cada corporação lançava os seus memoriais de reivindicações, quase todas coincidentes, na maioria delas. Mas uma ação de conjunto, coordenada para a determinação do objetivo comum, não se tornava exequivel no momento, devido à impossibilidade realização de assembléias sindicais.
Foi então que se constituiu o Comitê de Defesa Proletaria, resultante de uma reunião clandestina de militantes de várias categorias sindicais. Sua função não seria de órgão diretor para expedir palavras de ordem. Sua missão seria de um nucleo de relações e coordenador das reivindicações dos trabalhadores em agitação e privados de seus sindicatos e de seu organismo federativo. De conformidade com essa característica, seu primeiro trabalho foi reunir em um único memorial as reivindicações comuns a todas as categorias profissionais, constantes de boletins por elas divulgados, e que, anteriormente, tinham sido objeto de exame nas organizações operárias, antes de seu fechamento. Constavam dessas reivindicações generalizadas, entre outras, a jornada de 8 horas, aumento dos salários, redução dos alugueis, normalização do trabalho das mulheres e dos menores, melhoramento dos locais de trabalho.

Encabeçavam essas reivindicações as exigências do respeito ao direito de organização e de reunião, e a libertação imediata de todos os operários encarcerados. As reivindicações, especificas de cada profissão seriam acrescentadas pelas mesmas. Embora a vigilância policial fôsse exercida com o maximo rigor, esse memorial do Comitê da Defesa Proletaria teve a maxima divulgação entre os proletarios em luta.

A situação ia se tornando cada vez mais grave com os choques entre a Policia e os trabalhadores. O Comitê de Defesa Proletária, somente vencendo toda a sorte de dificuldades conseguia realizar apressadas reuniões em pontos diversos da cidade, às vezes sob a impressão congrangedora do ruido de tiroteios nas imediações. Tornava-se indispensavel um encontro dos trabalhadores, para ser tomada uma resolução decisiva. Surgiu, então, a sugestão de um comicio geral. Como e onde? E como vencer os cercos da Policia? Mas a situação, que se desenrolava com a mesma gravidade, exigia a sua realização. O perigo a que os trabalhadores se iriam expor estava sendo transformado em sangrenta realidade nos ataques da Policia em todos os bairros da cidade, deles resultando também vitimas da reação, inumeros operarios, cujo único crime era reclamarem o direito à sobrevivencia.

E o comicio foi realizado. O Brás, bairro onde tivera inicio o movimento, foi o ponto da cidade mais indicado, tendo como local o vasto recinto do antigo Hipodromo da Mooca. Foi indescritivel o espetaculo que então a população de São Paulo assistiu, preocupara com a gravidade da situação. De todos os pontos da cidade, como verdadeiros caudais humanos, caminhavam as multidões em busca do local que, durante muito tempo, havia servido de passarela para a ostentação de dispendiosas vaidades, justamente neste recanto da cidade de céu habitualmente toldado pela fumaça das fábricas, naquele instante, vazias dos trabalhadores que ali se reuniam para reclamar o seu indiscutivel direito a um mais alto teor de vida. Não cabe aqui a descrição de como se desenrolou aquele comicio, considerado como uma das maiores manifestações que a história do proletariado brasileiro registra. Basta dizer que a imensa multidão decidiu que o movimento somente cessaria quando as suas reivindicações, sintetizadas no memorial do Comitê de Defesa Proletária, fôssem atendidas. O término do comicio teve o mesmo aspecto de que se revestiu o seu início. A multidão se desdobrava em numerosas colunas que se punham em marcha, de regresso aos bairros. Os militantes mais visados retiravam-se no meio de grupos espontaneamente formados. Soube-se mais tarde que, em pontos distantes do local do comicio, haviam-se realizado varias prisões.

A esta altura dos acontecimentos chegou ao conhecimento do Comitê de Defesa Proletaria a iniciativa surgida no meio jornalistico de ser realizado um encontro de uma comissão de jornalistas e o referido comitê de Defesa Proletária. O convite foi feito por intermédio do diretor do jornal “O Combate”, Nereu Rangel Pestana. O encontro foi marcado. Os membros do comitê compareceram à reunião com a segurança de não serem presos, em virtude do compromisso assumido pelo presidente do Estado com os jornalistas. O local escolhido foi a redação de “O Estado de S. Paulo”, então situado na praça Antonio Prado. A comissão de jornalistas era composta de representantes de jornais diários da Capital e o Comitê de Defesa Proletária, pelos seguintes elementos: Antonio Candeias Duarte, comerciário; Francisco Cianci, litógrafo; Rodolfo Felipe, serrador; Gigi Damiani, pintor, diretor do jornal libertário “La Bataglia”; Teodoro Municeli, diretor do jornal socialista “Avanti”, e Edgard Leuenroth, jornalista, diretor do jornal anarquista “A Plebe e secretario do comitê.

Na primeira reunião foi examinado o memorial das reivindicações dos trabalhadores, apresentado pelo Comitê de Defesa Proletaria, que a comissão de jornalistas estava encarregada de levar ao governo do Estado. A segunda reunião teve o seu inicio retardado, em virtude da prisão de dois dos membros do comitê de Defesa Proletaria ao sairem da redação, após a primeira reunião. Os entendimentos seriam rompidos se esses dois elementos não fossem imediatamente postos em liberdade. Essa resolução foi transmitida ao presidente do Estado. A exigencia foi atendida, os elementos levados à redação, e a reunião pôde ser realizada com breve duração, pois o governo ainda não havia entregue a sua resolução.
A resolução da concessão das reivindicações dos trabalhadores foi dada por intermédio da Comissão de Jornalistas, com a informação de que já estavam sendo libertados os operários presos durante o movimento. Foram realizados comicios dos trabalhadores em vários bairros para a decisão da retomada do trabalho, que se iniciou no dia imediato. São Paulo reiniciava suas atividades laboriosas. A cidade retomava o seu aspecto costumeiro, restando, entretanto, a triste lembrança das vitimas que haviam deixado lares enlutados. Muito tempo ainda não havia decorrido, quando se verificou a minha prisão. Iniciou-se então minha peregrinação pelos postos policiais, com o fim de serem burlados os “habeas corpus” requeridos quando fui transferido para a Cadeia Publica, hoje Casa de Detenção. Após seis meses, fui levado ao Tribunal do Juri, para ser julgado pela estupida acusação de ter sido o autor psiquico-intelectual da greve geral de julho de 1917. Fui absolvido por unanimidade de votos, após dois adiamentos, com o intuito de impedir de ter também como defensor, ao lado do dr. Marry Junior, o grande criminalista dr. Evaristo de Morais. Passado algum tempo, divulgou-se a notícia de deportação de alguns militantes proletários para outros Estados.

Poderia ser mais detalhado, se isso fosse aqui cabivel, e se a renitente crise de saude, que me detém em casa, não me impedisse de utilizar o documentário de que disponho. Isto o farei tão breve seja possivel, se conseguir avançar mais um pouquinho alem do marco octogenario da vereda de minha vida... Agora, julgo não ser descabido ocupar mais algumas linhas a propósito da referencia sobre um meu encontro com o dr. Julio de Mesquita Filho, em Campinas. Foi em abril de 1958, por ocasião da Exposição Retrospectiva do I Centenário da Imprensa de Campinas. A organização do Certame foi confiada a mim, na parte relativa à imprensa geral do Brasil, e ao senhor José da Costa Mendes, a de Campinas. O dr. Julio de Mesquita Filho lá esteve para realizar uma Conferência.

Foi quando se verificou a referida palestra com o dr. Mesquita sobre episodios do movimento proletario. Prende-se um deles à greve geral de 1917, e que serve como mais uma demonstração da mentalidade reacionária então imperante. Quando nos reuniamos na redação do “Estado”, usavamos para nossos apontamentos o mesmo papel destinado ao uso dos redatores e encabeçado com o nome do jornal. A policia serviu-se disso para lançar a calunia de que o jornal tinha ligações com a greve. Essa infamia foi denunciada com veemencia pelo sr. Nereu Rangel Pestana, no jornal “O Combate”.

Um outro episodio, relembrado na minha palestra com o dr. Mesquita, verificou-se em 1919, ano excepcionalmente agitado do movimento proletario paulistano. Publicava-se, então, em edição diária, o jornal libertário “A Plebe”, cujo aparecimento, sob minha direção, coincidiu com o inicio da greve de 1917. Certa noite, quando nos encontramos à lufa-lufa da preparação do jornal, recebemos informação de que a sede do jornal seria invadida pela policia. Efetivamente, a redação foi cercada por policiais, que ali permaneceram toda a noite. Alguém, que estivera com a autoridade responsavel diligencia, transmitiu-nos a estranha informação de que a policia somente invadiria a redação às 6 horas da manhã, isso em respeito a uma determinação legal. Era justificavel nossa estranheza, pois, naquele então, os assaltos a sede sindicais e a domicilio de operarios, na calada da noite, estavam na ordem do dia.

Mas há de registrar um outro aspecto desse episodio verificado naquela memorial noitada de jornalismo proletario. Foi quando, esperando a entrada, a qualquer momento, dos policiais invasores, alguém entrou apressado e, com um todo de admiração, informou: o dr. Julinho está aí. De fato, ante a admiração da autoridade, a improvisada redação do jornal proletaria recebia a visita de um diretor de um dos maiores jornais do Brasil. O dr. Julio de Mesquita Filho explicou que lá comparecia por ter sido informado do que estava acontecendo. A todos cumprimentou, e, somente após demorada palestra, deixava aquela velha casa do tempo de antanho, situada na rua das Flores, desaparecida com a abertura da Praça Clovis.
E, às 6 horas da manhã, a policia invadia a sede da redação do histórico jornal proletário".

TRAÇOS biográficos de um homem extraordinário. Dealbar [jornal], São Paulo, 17 dez. 1968, ano 2, n. 17.